Meu Natal em Bagdá.
Cedo ainda, muito antes do nascer do Sol, acendi a vela e despertei Fauzi Maluf, sacudindo-o de leve pelo ombro.
- Vamos à Missa! - disse-lhe. Os companheiros sírios já estão, com certeza, à nossa espera.
Fauzi não aguardou segundo aviso. Pulou da cama e vestiu-se rapidamente assobiando uma melodia que, nesse tempo, está muito em moda em Beirute.
- Nem um café? - reclamou quando já descíamos, aos pulos, a escada carunchosa e tosca.
- O café fica para depois da missa - respondi secamente. - Não há tempo a perder.
As almenaras, do outro lado do rio, desenhavam os seus perfis alongados à luz tênue do dia que vinha surgindo. Beduínos enroladinhos em seus mantos, e pescadores andrajosos, vergados sob pesado cestos, cruzavam por nós em silêncio e encaminhavam-se para a velha ponte das Tâmaras Suaves.
Na esquina da rua Tebala, junto à fonte dos Cameleiros, avistamos os nossos bons amigos sírios. Eram cinco. Jorge Habib trouxera sua esposa e uma cunhada, a Evelina, muito moça ainda e bastante viva e graciosa. Nejim, primo de Fauzi, e o velho Azer Selma, fabricante de tintas, completavam o grupo.
As duas mulheres mostravam-se inquietas e receosas.
A escuridão espessa derramava-se, ainda, por todos os cantos e recantos; os fanáticos muçulmanos, erguendo suas pesadas lanternas, despejavam sobre nós, míseros cristãos, olhares de ódio e desconfiança.
Dentro de alguns minutos, em célere caminhada, atingimos o bairro da cristandade. As ruas, naquele festivo dia, surgiram repletas de crentes que corriam para a Casa de Deus. Num ângulo da praça ficava a Igreja Armênia, pequenina e modesta, com sua fachada cinzenta; um pouco adiante, ostentando uma cruz imensa, a Latina; duas ou três quadras depois topava-se com o templo dos cristãos persas e entre as vielas escuras, semiocultas no meio dos casebres, achavam-se as igrejas Jacobita e Síria.
Foi para esta última que nos encaminhamos.
A nave, intensamente iluminada, desbordava de fiéis. As mulheres, envoltas em seus izars de sêda, davam ao templo um colorido vivo e alegre.
No centro, o velho Bispo, com suas veneráveis barbas brancas, envoltas em soberbo manto de ouro e carmezim, acolitados por cinco padres, avivava as chamas da fogueira tradicional. Os homens que formavam a "roda de fogo" entoavam, num idioma bárbaro e arrevesado, um hino sírio que eu não chegava a compreender. A multidão, em surdina, arrastava o coro como se fosse um lamento erguido para o céu.
Fauzi puxou-me pelo braço para junto de uma coluna onde já estavam a meiga Evelina e duas mulheres vestidas de amarelo, ambas com izars azuis.
Daquele ponto, realmente, podíamos acompanhar melhor a Missa de Natal.
As mulheres de amarelo ajoelharam-se. O Bispo proferia a prece das "boas graças":
Ó Senhor Jesus, tu nos deste a tua vida.
As chamas da fogueira erguiam, a dois ou três metros, os seus arabescos rubros. Os padres oravam em voz baixa, e suavam como escravos do deserto, sob a ação do calor. A mitra soberba do prelado tinha reflexos prateados.
Em dado momento fez-se silêncio. O Bispo calçou suas luvas vermelhas e recebeu das mãos de um jovem sacerdote, com a maior solenidade, uma grande almofada branca onde repousava a imagem do Menino Jesus. O divino Infante parecia sorrir para a vida e para o mundo, agitando no ar as suas mãozinhas cor de rosa.
O Bispo, levando nos braços a almofada com o Menino Jesus, caminhou devagar em redor da fogueira, seguido sempre dos cinco padres e de um grupo de fiéis. Enquanto isso, em tom grave e comovente, entoava a multidão um cântico de amor e de esperança:
"Como o servo sequioso
suspira
pelas águas da fonte,
assim minha alma
suspira
por vós, ó meu Deus!
Terminado esse cântico, o mesmo padre moço, que pouco antes trouxera o Menino Deus, tomou nas mãos uma grande bandeja dourada onde se amontoavam as brasas mais vivas, colhidas na fogueira. Formava o brasido uma coroa cintilante de rubis imensos.
Fez-se novamente profundo silêncio. O jovem sacerdote ergueu três vezes a bandeja de fogo diante do Bispo e entoou , sózinho, o cântico do amor divino. A sua voz, clara e perfeita, tinha qualquer coisa de suave e alegre que vinha direto ao coração:
"Senhor Jesus, óh Luz do Mundo,
eu te bendigo,
porque por toda a parte
e em todos os tempos,
como o sol,
tu iluminas, purificas,
alegras e dás vida a Vida...
Senhor Jesus, óh Luz do Mundo..."
Terminada a cerimônia Fauzi Maluf levou-me para um dos ângulos da nave e disse-me:
- Queres fazer-me um favor? Bem sei que conheces e sabes dialogar melhor do que eu. Leva estes cem mil rúpias àquele padre de barba loira que cantou "Senhor Jesus, óh Luz do Mundo!"
- Por que? - indaguei curioso. - Que fez o padre para merecer tal presente?
- Inspirou-me, meu amigo. Apenas isso: Inspirou-me! Aquele cântico sugeriu-me um poema maravilhoso, um verdadeiro poema de Natal. Seria ingratidão deixar sem recompensa tão grande ajuda.
Tomei o presente e levei-as ao padre da barba loira. Fui encontrá-lo em companhia de outros sacerdotes num pequeno aposento, que ficava nos fundos da igreja.
Recebeu-me de boa sombra, e ao ser por mim informado da resolução de Fauzi retorquiu, risonho, pousando-me as mãos sobre os ombros:
- Alegra-me saber que o hino do Fogo Novo inspirou o poeta Fauzi. Sinto dizer, porém, que esse presente (e apontou para as cem mil rúpias) não me cabe. Deve ser dado ao padre Nastas. A este, sim, devem caber todas as honrarias e recompensas. Foi o mestre paciente e bom que me ensinou a cantar.
E indicou, alargando o braço, um religioso de rosto redondo, já meio grisalho, que se achava a poucos passos de nós.
Que fazer? Dirigi-me, no mesmo instante, ao padre Nastas e falei-lhe sobre a origem daquelas rúpias com que o poeta Fauzi desejava presentear o inspirador de seu maior poema. Repeti a história acolchetando-a, ni fim, com a proposta do cantor.
O padre Nastas, esfregando as mãos, derramou-se em elogios ao seu discípulo. Bom menino, alma pura e simples de santo. Sempre tivera aquele gênio desprendido. Mas, recusou também, delicadamente, o presente das cem mil rúpias, dizendo (a sua voz tinha um ligeiro sotaque europeu):
- Pelo que fiz nada mereço. Nada posso merecer. O valioso presente do seu amigo, o poeta Fauzi, deve caber ao padre Nicolau, autor da música e da letra. Leve estas rúpias ao padre Nicolau!
Essa é boa! - pensei. - Esses padres estão com cerimônias e cem mil rúpias, neste tempo, não são coisa assim para se desprezar! O primeiro recusa e manda ao segundo; o segundo não aceita o dinheiro e indica um terceiro... Este, com certeza, vai sugerir um quarto!... Sabe?! O melhor, para acabar com essa história, é entregar logo o dinheiro ao Bispo!
Mas, enfim, antes de ir ao Bispo, procurei, sem detenção, falar com o padre Nicolau. Não me foi difícil encontrá-lo. Achava-se numa sala próxima afinando o sol de prata de um pequeno violino.
- Que deseja de mim, - perguntou-me, com simpatia, repousando o arco sobre o ombro direito. (Notei-lhe também na voz certa inflexão estrangeira).
Pela terceira vez contei, tim-tim por tim-tim, a tal história da lembrança de Fauzi, as cem mil rúpias da "inspiração", completando-a com as judiciosas considerações do velho padre Nastas.
- É curioso! Muito curioso! - exultou o reverendo Nicolau, com um gesto de espanto. - Sinto-me profundamente lisongeado com a lembrança desse poeta. Pela primeira vez vejo-me forçado a receber o pagamento por uma mercadoria que jamais pensaria em vender: Inspiração!
- Mas não se trata de uma venda! - protestei, delicado. - Essas cem mil rúpias valem, apenas, como uma lembrança, como um presente. Um presente de Natal... e nada mais.
Depois de ligeira hesitação, condescendeu o padre:
- Aceito o presente. Desejo, apenas, levar pessoalmente ao dadivoso poeta (se for possível) os meus agradecimentos.
- Com o maior prazer! - aquieci. - Fauzi deve estar à minha espera no pátio.
Saímos. No pequeno pátio do templo, já cheio de sol, sentados num pequeno banco de pedra, Fauzi e Evelina palestravam como dois jovens namorados.
Com um gesto ligeiro indiquei Fauzi ao sacerdote:
- Eis ali, reverendo, o generoso poeta Fauzi que se inspirou ao ouvir o Hino do Fogo, durante a missa.
Padre Nicolau parou, e atalhou breve, num movimento de espanto:
- Espere, meu amigo! Aquela jovem que está ali, conversando com o poeta, não é Evelina, filha de Zoraik?
- Sim, sim - confirmei impaciente. - É Evelina, filha de Zoraik, e cunhada de Jorge Habib!
- Conheço-a muito bem - tornou o padre. - Ela frequenta assiduamente a Missa.
E, repetiu devagar, bem devagar:
- Conheço a muito bem! Linda menina!
E feito um silêncio curto, o padre sírio devolveu-me as cem mil rúpias e, muito sério, desculpou-se constrangido:
- Não devo receber esse dinheiro! Compreendo agora toda a verdade. O poeta Fauzi não se inspirou na minha despretenciosa música!
E, como eu o fitasse com indisfarçável assombro (o seu rosto pareceu-me carregado e pensativo) acrescentou com firmeza:
- Entregue esse presente de Natal a Evelina, foi ela meu caro, a única inspiradora!
E, sem mais uma palavra, encaminou-se cabisbaixo para o interior do templo.
Olhei para o alto. No azul imenso, que o vento do deserto varrera pela madrugada, duas nuvens brancas pestanejavam ao longo como se fossem almas caravaneiras perdidas pelo céu.
Foi assim, meu amigo, que passei o meu primeiro Natal em Bagdá.
Uassalã!
Texto original de Malba Tahan, em Maktub. Fiz algumas modificações para atualização no tempo e espaço, mas a essência é a mesma!
Viva a cultura brasileira!